O ser que é ser jamais vacila *
Por Lauro Junkes **
Conheci Aníbal Nunes Pires apenas em 1970, quando, por algum tempo, retornou à ativa como Catedrático de Literatura Brasileira, no Curso de Letras da UFSC, que eu havia iniciado em 1968. Há muitos anos, o Professor Aníbal integrava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, além das suas funções na Faculdade de Educação da UDESC. Entretanto, via-se constantemente incumbido de funções administrativas, que não lhe facultavam tempo para o exercício do magistério. Por exemplo, quando iniciou a descentralização na administração superior da crescente Universidade Federal de Santa Catarina, o Reitor David Ferreira Lima nomeou, pela Portaria n0 159/69, o “Prof. Aníbal Nunes Pires para, como executor, implantar a Sub-Reitoria de Assistência e Orientação aos Estudantes”, tendo, a seguir, sido designado para exercer “pro-tempore” a função de Sub-Reitor e Presidente da Comissão de Assistência e Orientação ao Estudante, função, aliás, plenamente adequada ao seu caráter, porque ele sempre se destacou por seu amável e compreensivo relacionamento com as pessoas, respeitando-as e sabendo valorizá-las.
Entretanto, ao ouvir o nome Aníbal Nunes Pires, a imagem que, de imediato, me surge à mente é de alguns anos mais tarde, quando eu já integrava o Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, no qual também estava lotado Aníbal Nunes Pires. Numa sexta-feira, final de tarde, ambos descíamos as escadarias do prédio de Comunicação e Expressão. Como eu já concentrava meus estudos e pesquisa na produção literária de Santa Catarina, falei-lhe do destaque dos três irmãos Eduardo, Gustavo e Horácio Nunes Pires e perguntei-lhe que relações de parentesco mantinha com aqueles poetas. Olhou-me, com aquele sorriso sempre aflorando aos lábios, e respondeu que a pergunta exigiria uma resposta longa, e num outro dia conversaríamos mais detalhadamente sobre o assunto. Nosso diálogo somente poderá prosseguir, algum dia, em outra dimensão, pois veio a falecer dois dias depois, vitimado por derrame.
Nascido em Florianópolis, no dia 9 de agosto de 1915, faleceu na madrugada de 24 de abril de 1978, deixando a esposa Eugênia de Oliveira Nunes Pires e, para continuarem seus projetos de humanismo e arte, os filhos: Maria Cristina Nunes Pires, Clarice Nunes Pires Cabral, Maria José Nunes Pires Feijó e José Henrique Nunes Pires, o Zeca Pires, cineasta que mais diretamente prossegue envolvido no projeto de redimensionar o mundo e a sociedade através da arte cinematográfica.
Durante seus cursos em duas Faculdades: Economia e Direito, e ainda no de Contador, Aníbal Nunes Pires se enriqueceu com profunda formação intelectual e humanística, razão pela qual optou sempre pelo exercício do magistério, conciliando áreas tão antípodas como Matemática e Português/Literatura. Em Florianópolis, todas as instituições de ensino de maior relevo – desde os Colégios Catarinense e Coração de Jesus, até as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e de Ciências Econômicas da UFSC, bem como a Faculdade de Educação da UDESC – se honraram com a participação do Professor Aníbal Nunes Pires no seu corpo docente.
Filho de Cristóvão Colombo Nunes Pires e de Maria Lima Nunes Pires, pertencia a tradicional família na cidade de Nossa Senhora do Desterro: Feliciano Nunes Pires (1786-1860), foi Governador da Província (1831-1935); Cristóvão Nunes Pires (1834-1894), co-fundador do Liceu de Artes e Ofícios do Desterro, foi Deputado e também Governador (1893-1894); Luiz Nunes Pires participou da Constituinte republicana; e os escritores Professor Anfilóquio Nunes Pires (1819-1889), também Deputado Provincial (1876-1877) e seus três filhos poetas: Eduardo (1845-1902), Gustavo (1848-1881) e Horácio (1855-1919), este, autor da letra do Hino do Estado de SC, por longos anos Diretor Geral da Instrução (antecessora da Secretaria de Educação do Estado). Ligada à Polícia Militar, na Trindade, existe a Escola Militar Feliciano Nunes Pires; Cristóvão e Feliciano são nomes de ruas do Centro de Florianópolis e Anfilóquio, em Florianópolis, Gaspar e Joinville; Aníbal é nome de rua no bairro José Mendes e em Palhoça, de Colégio em Capoeiras e de Fundação Cultural em Florianópolis.
Aníbal Nunes Pires foi, inequivocamente, um autêntico profissional do magistério. Profissional, afirmo, no sentido de dedicação e responsabilidade. Aliava competência intelectual de elevada cultura ao espírito humano de compreensão, bondade e solidariedade. Suas aulas nunca se resumiam a frias exposições ou ostentação de cultura, que, aliás, não faltava. Dotado de inteligência lúcida, expandida por ampla visão cultural, nunca assumia ares de superioridade, mas seu senso de humildade justa o tornava amigo e colega de todos. Desconhecia atitudes mesquinhas, pois sua modéstia e bondade naturais, seu humanismo fraterno e solidário, seu diálogo sempre acessível e expansivo o tornavam estimado por todos. Professor durante mais de quarenta anos, por suas classes passaram gerações seguidas de pessoas, para cuja educação dedicou o melhor de si, tendo aprendido com a experiência que: “Para ser professor, é preciso, antes de tudo, ter paciência”.
Por isso, Aníbal foi sempre um professor acessível, pronto para receber, estimular e orientar qualquer aluno ou pessoa que o procurasse. Nada de distanciamento, nada de superioridade, nenhum subterfúgio para dificultar o acesso do aluno ao mestre, estendendo seu interesse e sua atenção para além da sala de aula. Procurava compreender e orientar os jovens nos seus gostos e aptidões, para que estes se preparassem não apenas para a escola, mas integralmente para a vida. Organizava com frequência grupos de jovens para discutirem temas de cultura e arte, fomentava e orientava aqueles que demonstrassem interesse para encenarem peças de teatro. Sua fineza diplomática no trato com as pessoas, mesmo divergentes em posições, pensamentos ou gosto, granjeou-lhe amigos inúmeros, sem obstáculos de idade ou camada social. Logo após sua morte, em O Estado de 26 de abril de 1978, Gustavo Neves escrevia do “Professor Aníbal”: “Modesto e bom, desfrutava, não apenas no magistério catarinense, mas em todos os círculos sociais do Estado, uma estima espontaneamente conquistada pela sua presença e pelo seu trato cavalheiresco (…) Amigo e não apenas colega daqueles a quem orientava, no trato das artes, desfrutava amplíssimo círculo de amizades, em os quais o seu nome é lembrado com saudade e respeito”.
Aníbal confirmava sua superioridade cultural e intelectual através do seu espírito aberto e receptivo às pessoas e às tendências estéticas. Florianópolis, na sua época de formação, era cidade eclipsada no tradicionalismo da estética parnasiana, pois se fechara às aberturas modernistas. Logicamente, Aníbal sofreu tais influências. Entretanto, na década de 1940, quando um grupo de jovens irrequietos se dispôs a superar tal pasmaceira, foi ao abalizado Professor Aníbal Nunes Pires que recorreram, para que ele conferisse suporte de paternidade aos ideais do Círculo de Arte Moderna ou Grupo Sul, que veio a tornar-se o mais expressivo movimento literário-cultural que o Estado já registrou, graças ao qual explodiu ampla criatividade em todas as áreas da expressão artística: literatura, artes plásticas, teatro, cinema, conduzindo ao quadro exponencial, sobretudo na literatura e nas artes plásticas, que o Estado ostenta na segunda metade do século XX. No nº 1 da Revista Sul, em 1948, o editorial já revela a amplitude desanuviada do pensamento de Aníbal Nunes Pires, definindo como propósito fundamental o de “revelar os valores novos e acompanhar as ideias do mundo atual no campo da filosofia, da ciência, da cultura e, principalmente no campo das letras e das artes”, sem cogitar absolutamente “de questões político-partidárias e de religião”. Alinhando-se com o pensamento engajado de Sartre, Aníbal afirmava que “literatura alguma merece respeito ou consideração, a menos que reconheça e registre as circunstâncias históricas, os conflitos morais e sociais que a animam”.
Pode-se estranhar que Aníbal Nunes Pires, professor e intelectual em constante contato com a arte, sobretudo a literária, tenha praticado pouco a arte de escrever. Todos os que o conheceram, no entanto, são unânimes em atestar que sua personalidade fazia-o direcionar suas atividades muito mais para os outros – para estimulá-los e os orientar na apreciação e criação artísticas, ficando sempre em segundo plano sua própria produção. Projetou-se com maior relevância na poesia, sem desmerecer o conto e o ensaio. Publicou apenas o livro de poemas “Terra Fraca”. Os demais escritos deixou-os dispersos por jornais e revistas e eu os coligi no livro “Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul” (Editora da UFSC, 1982), no qual constam não apenas pormenores da sua carreira, como maior análise dos seus escritos.
Também na poesia, Aníbal Nunes Pires deixa transparecer o perfil de um grande humanista, de uma alma sensível, preocupada com seus semelhantes. Quase todos os seus poemas colhem sua temática no viver cotidiano e revelam a consciência do poeta sobre o caráter transitório e deteriorante do viver humano, evidenciando um contínuo perquirir do significado da existência e do destino de tudo que nos rodeia. Daí provém uma tonalidade frequentemente desilusória e pessimista, superada, entretanto, magistralmente pelo poema final do livro – mensagem de inconfundível confiança no ser humano, ao qual se dirige em “linguagem / que é ternura / que é desapego”, para prenunciar o eterno “Amanhecer”:
Havendo paz, sempre é céu;
Em paz, nunca diremos “não”.
Luz e sombra hão de ser sempre luz.
A cultura catarinense, crescentemente amplificada, deve a Aníbal Nunes Pires a pujante liderança com que orientou e imprimiu confiabilidade ao renovador Círculo de Arte Moderna, de incomensurável influxo sobre o desdobramento de toda a cultura e arte no Estado, durante a segunda metade do século XX. Indeclinável é o número de pessoas que, estimuladas e orientadas por Aníbal Nunes Pires, passaram a desenvolver mais profícua leitura dos textos literários, a apreciar com mais segurança obras de arte, a desenvolver seus dons na representação teatral, a dar vazão ao seu mundo interior, através da criação artística, a ampliar sua fruição estética e a apreciar convictamente os mistérios insondáveis da Arte. Aníbal Nunes Pires foi, indubitavelmente e antes de tudo, um autêntico Professor, pois o
imenso cabedal de cultura que amealhou, soube compartilhá-lo com todos os que com ele conviviam, sem nunca fazer-se de rogado nem eclipsar-se em inacessíveis superioridades. Justíssima e oportuna se apresenta, pois, a homenagem ora concretizada, no conjunto dos depoimentos deste livro, que reverenciam a memória do emérito humanista que foi o Professor Aníbal Nunes Pires. Muitos ex-alunos seus aqui externam sua admiração e reconhecimento pela honra de terem participado das lições de vida que hauriram em suas classes. Aqui comparecem sua Esposa, Governadores do Estado, Reitores da Universidade, companheiros de lutas no Grupo Sul, Professores, Escritores, Poetas, Artistas Plásticos, Animadores da Cultura, enfim, pessoas ligadas à Cultura e à Arte, representando os mais seletos setores da sociedade, alguns deles já falecidos, para confirmarem os méritos desse humanista que viveu para a Arte e a Cultura, e a quem, onde se encontrar, se aplicam os
versos finais que Cruz e Sousa condensou em “Supremo Verbo”:
Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que se vão multiplicando,
A portas de ouro que se vão abrindo!
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- Texto de apresentação do livro de depoimentos “Aníbal Nunes Pires: Educação e Literatura”
(Editora da UFSC, 2006), publicado neste site em julho de 2009.
- ** Lauro Junkes é professor de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.
Presidente da Academia Catarinense de Letras em 2003-2004; 2004-2006; 2006-2008. Desde
2002 integra o Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina. - Obs.: A foto deste link mostra o professor Aníbal ladeado por turma de alunos.
https://dac.ufsc.br/espacos-culturais/galeria-de-arte-da-ufsc/anibal-nunes-pires/
Galeria de Arte da UFSC – Sala Aníbal Nunes Pires
Acesso em 14/09/2020, às 18h55min. – Amícia Parreira Martins, Galeria de Arte/DAC/SECARTE/UFSC.